«Os humanóides acham que os animais são estúpidos, que as árvores são mudas e que o céu pertence aos deuses. A sua ignorância não conhece limites. Nestas Terras de Lugo, há respeito pelo mar e o resto é prepotência e vaidade. Esquecem-se ou fingem que se esquecem que não há animal cuja vontade possa ser domada ou semente cujo fruto esteja garantido. Julgam-se livres de tirar a liberdade a outros e de estorquir da terra mais do que precisam. Atitudes desprezíveis pelas quais nenhuma galinha lhes há-de dar um ovo e nenhum boi lhes puxará uma carroça. Por mais palavras que inventem, não há animais "domésticos" nestas terras, não há "explorações agrícolas". Tudo isso já foi tentado, vieram com chicotes, subornos, venenos, tudo para tentarem pôr a Natureza a trabalhar para eles. Mais cedo ou mais tarde, estes belos planos falharam. E agora, se calhar, vêm suplicar pela minha ajuda.
Houveram tempos em que os druidas eram fundamentais para cada comunidade. Nenhum líder seria respeitado sem contar com o nosso apoio. Toda a gente dependia da nossa sabedoria para aprender mais sobre o mundo. Nós sabemos ler o tempo nas nuvens e o caminho nas estrelas. Nós sabemos de que árvore se pode construir uma casa ou que flores devem ser postas no cabelo de uma noiva. Nós dominamos as runas e os números mas não somos dominados por eles. Nós escondemos segredos para proteger o povo da sua ignorância e revelamos verdades para acordar a sua bravura. Nós conhecemos todas as maneiras de dar à luz uma criança ou de dar descanso a um cadáver. Nós temos experiência de vida, já passámos por muito do mesmo que toda a gente e por muito de invulgar também. Nós muitas vezes chegamos a discordar entre nós e reconhecemos os limites da nossa sabedoria.
Falo de mim no plural com alguma tristeza. Já fomos alguns, depois poucos, agora sou só eu e talvez um ou outro aprendiz. Druida passou a ser o meu nome, não há mais ninguém como eu. Sou uma viajante solitária nestas terras, faço saber onde estarei presente quando sei de alguém em quem confio ou que pode precisar de mim. Algumas pessoas mais humildes vêm ter comigo procurando ajuda. Talvez uma galinha que lhes dê ovos durante uns meses porque a horta foi destruída pela geada. Talvez uma planta que possam encontrar não muito longe daqui para dar a uma avó doente. A Natureza pode ser cruel mas não é implacável. Se fizerem algo por ela, pode fazer algo por vós.
Eu costumava viajar pela orla de muitas civilizações e agora quase todas foram devastadas pelo jovem Terminus. Em pouco tempo, a Natureza está a tomar conta desses lugares e uns poucos sobreviventes vão encontrando outra maneira de viver. Nem tudo está em ruínas, mas mesmo as mais velhas construções expostas aos elementos acabam por sofrer derrocadas. Muitos dos que não foram massacrados pelo exército de Ébano foram os que conseguiram fugir para terras de Lugo. Só uns poucos se esconderam e conseguiram se manter próximos de onde moravam ou trabalhavam. Vigias deixados por Terminus estão atentos a qualquer tentativa de reconstrução dos locais sagrados. E na Natureza não faltam predadores que agora estendem os seus territórios tomando estas ruínas como parte do seu domínio. Além de haverem pequenas tribos nativas que viviam subjugadas por estas civilizações e que agora são livres para tomarem a sua terra de volta e decidirem o seu destino. São tempos interessantes e atribulados estes que o horizonte a Este das Terras de Lugo apresenta.
Este silêncio pós-apocalíptico que se apoderou de tantas civilizações é fértil e muito bem-vindo. Precisava de tempo para ficar na memória destas gentes, para que apreciassem a dádiva que é o lugar que têm na Natureza. Talvez se lembrassem que em tempos éramos todos filhos da floresta, sem palavras e sem mentiras. Mas alguns, como o Mestre Bardo, dirão que não. Que a música sempre estava lá no meio do silêncio. E que a Este das Terras de Lugo há novas histórias e aventuras, muitos segredos e tesouros a descobrir. Que a roda-viva não pára e que a civilização há-de voltar mais cedo do que se imagina. O Mestre Bardo fala bem como sempre, mas também há uma altura para estarmos calados e aprendermos. E então não desperdicemos esta oportunidade.»